quarta-feira, dezembro 19, 2007

Sobe, sobe Balão, sobe!

Desta vez decidi resfriar os meus ânimos no que toca a oferecer coisas à minha querida sobrinha. Facilmente me descontrolo nas secções de brinquedos das grandes superfícies, mas este Natal vou manter-me afastado da confusão e fiel ao princípio que tudo o que é demais chateia.
A dificuldade de seguir o plano, já sei, vai ser difícil. Afinal a miúda está gira e os dois anos e meio de experiência de vida trouxeram-lhe alguma credibilidade entre os adultos e até já consegue ter uma conversa com as pessoas sem pedir colo passados 10 minutos. Mas convenhamos, continua a desprezar todo e qualquer objecto, tendo inclusivamente partido metade dos brinquedos que lhe ofereceram nas cerimónias oficiais. O telefone do Ruca já foi à vida, metade das bonecas foi decapitada sumaríssimamente sem direito a julgamento e os puzzles também já perderam metade das peças.
Por isso é usual ver a minha irmã de vassoura da mão a juntar cacos de várias cores e a lamentar-se:
- Raça da miúda parte tudo.

No último ano, a Adriana, aprendeu a cantar e dançar. A voz, a bem da verdade, não é das melhores, desafina e esquece-se amiúde das letras, mas o que não tem em talento possui sem dúvida em ternura e toda a gente que a vê nestas coisas do canto desfaz-se como um torrão de açúcar no chã.
-Tão querida…

Mas apesar de despertar nos adultos um enternecimento merecido, a coisa atinge proporções desastrosas cada vez que joga o Benfica. Assim, em vez de poder assistir comodamente no sofá às arrancadas do Rodriguez, aos remates do meio campo do Di Maria ou ás sarrafadas do Bynia, tenho de gramar com o atirei ao Pão ao Gato, o Sebastião Come Tudo e os Patinhos Sabem Nadar. E, como se fosse pouco o que perco, obriga-me a cantar com ela em dueto.
Por isso, quando me vejo, quase sem querer, a imitar galinhas a dar às asas ou pinguins a baloiçar no gelo, não é raro recorrer subitamente à psicologia infantil, aproveitando as respostas pré-definidas ensinadas pelo meu cunhado:
- Adriana, quem é o melhor?
- O Benfica!
- Quem é que eu sou
- Tio Hugo
- Queres ver o Benfica? Queres ver o Benfica com o tio Hugo, Adriana?
- Não!

Mas os miúdos chateiam um bocadinho.
É de notar que o vigor físico deles arrasa facilmente com o meu e é normal que sempre que a minha sobrinha vai lá a casa, por exemplo, além de ficar com a casa toda desarrumada, o que por si só é uma chatice, tenha também de me deitar mais cedo porque fico com os músculos todos doridos devido à correria a que sou sujeito.
E se vamos ao Shopping e há lá um pai Natal, o que, infelizmente, acontece sempre, já sei que vai sair de lá com um balão. A partir daí tenho o dia estragado. Vai andar a tarde toda aos saltos atrás do balão arrastando-me constantemente com ela porque a raça da miúda é querida como o raio e leva-me sempre à certa. Mas invariavelmente, quando as pernas me começam a pesar mais do que deviam, tenho de rebentar o balão disfarçadamente. O gesto é feio, acreditem que me dói o coração só de pensar em tamanha crueldade, mas é pior se eu cair para o lado de exaustão.
Mas a miúda, que lá tem a sua esperteza para gáudio das avós e dos avos, quando o balão rebenta, em vez de chorar e ir a correr para os pais para o consolo, tira do bolso outro vazio, estendo-mo, e pede com aquela cara delambida que me leva a acreditar que, afinal, ela sempre merece mais do que aquilo que eu lhe dou:
- Mais tio, mais!

terça-feira, junho 05, 2007

Escrita Criativa

No meu curso de escrita criativa, o formador propôs um exercício onde teriamos de analisar uma pessoa e descobrir-lhe certas particularidas que sejam cómicas.
A fim de poupar tempo e trabalho na busca, optei por focalizar a observação em minha casa escolhendo, para o efeito, a minha namorada.
Vivemos juntos há 3 anos e parece que agora as coisas deixaram de ser o mar de rosas que costumavam ser para se tornarem num inferno, sentindo-me eu, neste momento, alvo duma perseguição diária sem razão e com efeitos nefastos no meu habitual equilíbrio emocional. Seja como for, foi graças ao exercício proposto que consegui desvendar parte do mistério.
Dezembro é o mês do meu aniversário e, por conseguinte, é habitual receber imensas prendas, até porque, 20 dias depois se junta o Natal. Pode-se dizer que, mediante este desígnio do destino, a minha existência, por si só, costuma sair bastante cara nesta altura a familiares e amigos mais chegados.
A namorada, como é normal, gosta imenso de se fazer notar neste mês e esforça-se imenso por me oferecer as prendas perfeitas. Depois de pesquisar todas as hipóteses decidiu, este ano, oferecer-me uma Playstation e uma assinatura para 12 meses da Sport Tv.
Deixo-vos a imaginar a festa que fiz após o tradicional desembrulhar dos presentes.
Tendo em conta a singularidade de cada um deles, confesso que costumo amiúde usufruir dos mesmos sempre que existe uma pequena oportunidade para tal. Faço-o não só pelo prazer que me dão mas também, e essencialmente, como prova do amor que sinto.
De boas intenções está o mundo cheio como se costuma dizer e se eu, para lhe mostrar o apreço que tenho pelo que ela me dá, me instalo no sofá a fazer um joguinho na Playstation depois dum árduo e deprimente dia de trabalho, em vez dum amo-te:
- Já estás a jogar outra vez? Passas a vida a jogar, tu!

Se, por outro lado, pego numa cerveja fresca e me preparo para assistir a um jogo de futebol sábado à noite para rentabilizar ao máximo a assinatura da sport tv que ela orgulhosa me ofereceu, em vez de receber um carinho:
- O quê, vais ver bola outra vez? Sabes me dizer há quanto tempo não saímos um Sábado à noite?

Percebendo todo o encadeamento de situações que levaram ao comportamento descrito, decido fazer o que muitos psicólogos aconselham nos programas da Ópera:
- Ser frontal e sincero.
E foi com estas palavras na cabeça que me dirigi a ela, ciente que tudo se iria resolver pelo melhor, afinal nada suplanta o verdadeiro amor:
- Querida acho que devemos conversar sobre nós...
Ela, sem me olhar, fez uns gestos bruscos com a mão e resolveu a questão:
- Agora não, espera um bocado, deixa-me acabar de ver a novela!


segunda-feira, agosto 21, 2006

Super Poderes

Não tenho uma explicação razoável mas continuo a ser um fervoroso adepto dos filmes de Verão de Hollywood. É claro que no meio de tantas estreias e de tantos efeitos especiais apanho banhadas monumentais que me deixam deprimido e bastante aborrecido por ter gasto dinheiro em tal mediocridade. É que o dinheiro, já se sabe, custa a ganhar e 5 Euros sempre dão jeito para outras despesas. Bem me avisa o cigano que costuma rondar o supermercado onde faço as compras:
- Dois filmes por 5 euros! Não quer? Leve que é barato. Vieram da América! Ai!
Seja como for, a verdade é que este fim-de-semana, imbuído pelo espírito dos cartazes que por aí andam, fui ver o tão afamado Super-Homem. Nunca fui um apreciador de tal herói. Nem em criança lhe achei piada. São poderes a mais. O raio do homem apaga um fogo com um sopro, destrói pedras com um olhar e dá à volta ao mundo em 5 segundos. Ainda por cima, basta-lhe colocar uns singelos óculos à totó para não ser reconhecido na rua. Em contrapartida também não tem uma vida amorosa por aí além, quer dizer, pelo menos é o que dizem, mas pelas figuras ridículas que faz atrás dessa Lois Lane, é bem provável que tenham razão.
Infelizmente, não tenho uma opinião muito formada do filme porque o desassossego que se viveu naquela sala da Lusomundo era tanto, que uma pessoa estar ali ou numa praia da Costa era a mesma coisa. Mas a ideia que tive, dos poucos momentos em que me deixaram assistir descansado à projecção, foi que este filme de Bryan Singer é um bom filme.
Existem mesmo momentos brilhantes, como a ideia de colocar o Super-Homem, tal e qual um Deus, pairando sobre o planeta Terra ouvindo os pedidos de socorros dos terráqueos em apuros.
O Super-Homem é forte, não há que o negar. É o salvador de todos os males e se, por inexplicável obra do destino, me fossem a mim facultadas as suas capacidades de super-herói, haviam de ver aquilo que eu era capaz de fazer pelo mundo.
A nível pessoal, qualquer gajo que me buzinasse no trânsito levava logo uma arrochada que ficava desmaiado dois dias no asfalto para aprender a conter a pressa. O armário musculado do meu vizinho de cima, cada vez que batesse na mulher tinha de prestar contas logo ali com o Hugo.
- Porque é que não bate em alguém do seu tamanho?
O gerente do banco, onde tenho a minha conta, se não me baixasse o Spread, queimava-lhe todos os papéis da agência bancária com um simples olhar.
Em Portugal deixava de haver fogos. Era ponto assente. Andava sempre de vigia. Qualquer coisa que aparecesse, lá ia eu a voar para soprar a desgraça das matas. Patrulhava também a linha ferroviária de Sintra. Se surgisse algum gang mal intencionado, cada elemento do mesmo levava um chapadão bem assente na cara que no dia seguinte estavam todos na bicha do centro de emprego dispostos a tudo para melhorar de costumes.
Também iria despender alguma atenção ao conflito no médio oriente. Acabavam-se as guerras. Fanava os mísseis aos americanos e israelitas e a dinamite aos islâmicos. Depois queria ver as desculpas que davam para aumentar o preço do petróleo. Era um justiceiro, o homem mais forte do mundo, o planeta iria ter confiança em mim, iria venerar-me e seria capa da Time.
- Ó Hugo, abre-me aqui o frasco de Maionese que eu não estou a conseguir...
Não sei o que raio fazem nas fábricas de embalagens, devem ser os chineses mais a mania deles de fabricar tudo a baixo custo que apertam as tampas com uma tal força que depois um gajo, para as abrir, se vê à rasca.- Deixa estar, pronto, não tentes mais que eu peço ali ao nosso vizinho de cima para a abrir. Não fiques com essa cara que eu digo que ainda não chegaste a casa.


quinta-feira, junho 22, 2006

Percepção

Por acaso, curiosamente, ainda há bem pouco tempo num estúpido exame oftalmológico mantive uma conversa bem interessante com uma médica que me fez o dito exame. Era bastante novinha e tinha formas bem delineadas. Devia ter começado recentemente nas perigosas lides de cuidar da visão dos outros. Notava-se francamente a sua inexperiência que contrastava, e de que maneira, com uma beleza jovem e segura, habituada a ser alvo de comentários vários dos transeuntes masculinos e certamente femininos. O exame ocorreu após a colheita de sangue, de maneira que, ficar exposto a uma beleza daquelas fez com que o sangue corresse mais depressa e a boa disposição se entranhasse na minha pessoa mesmo apesar de estar em jejum ia para 3 horas.
- Então, Sr. Hugo, passa muito tempo ao computador?
- Sim, praticamente o dia inteiro.
- E vê bem?
- Tenho de confessar que começo a ter dificuldade em seguir as partidas de ténis.
- Então coloque a cabeça nesse aparelho aí e diga lá quais são as letras que consegue ver?
- Vejo um F, G, um C e o que me parece ser um K
- Um K? Tem a certeza?
- Não, pere aí, afinal é um H.
- Não, não era um H, era um Y. E agora diga-me lá se as três letras que aparecem estão alinhadas. - a voz dela tinha uma melodia que me embalava lentamente.
- Completamente.
- Tem a certeza?
- Perfeitamente alinhadas.
- Mas olhe que não. Existem duas delas que estão avançadas em relação à terceira. Diga-me lá quais são.
- Não consigo ver nada disso, para mim estão completamente alinhadas.
- Olhe nunca tal me aconteceu! Farto-me de fazer destes exames e nunca vi ninguém que me dissesse que as 3 letras estão alinhadas.
- Mas garanto-lhe que vejo as letras alinhadas.
- Pronto. E agora? Em que linha é que está o ponto A?
- Na segunda linha.
- Tem a certeza?
- Absoluta. O ponto A está na 2ª linha.
- Você não acerta uma. Estava na 3ª. Tire lá os óculos! - Pediu
Retirei os óculos e a oftalmologista desabotoou a blusa ficando apenas de sutiã. Era um sutiã rendado, branco que sustentava todo o peso da sua abençoada juvenilidade. Engoli em seco, claro, e acho que também produzi um som estranho gutural, embora não possa de todo afiançar tal o meu grau de concentração na imagem. Não sei que diabo a fez fazer aquilo mas...
- Agora olhe para os meus seios. Consegue ver uma pequena etiqueta cozida no sutiã, mesmo pequena?
- ...hã..sim...sim.
- O que diz a etiqueta?
- ...hã...hã...Benetton.
- Com um ou dois t’s?
- Dois.
- Os seus olhos estão óptimos, tome lá a guia e volte cá só para o ano.

quinta-feira, maio 25, 2006

Criaturas

Isto de atender ao público tem muitas inconstantes e nunca se sabe muito bem como um simples atendimento vai correr. Sendo o meu trabalho um serviço social onde o estado garante alguma protecção aos mais necessitados, estou sujeito a enfrentar toda e qualquer criatura, da mais culta à mais abjecta. Guardo na memória, com saudade, alguns momentos deliciosos. São motivo de alarido e de algum sentimento de ternura para com o mundo e população portuguesa no seu geral.
Não posso passar em claro a senhora que cheirava tão mal que antes de se chegar ao balcão descarregava uma lata quase inteira de Brise para que nós, quando a atendêssemos, não desconfiássemos que não tomava banho há uma semana porque lhe cortaram a água à duas.
- Mas que raio de cheiro é este? Isto é o quê? Conheço o cheiro mas não sei o que é? Isto é o quê? Aloe Vera? É não é?
Não me esqueço, também, do senhor que se julgava mais do que era e, sempre que falava connosco, desdobrava-se num esforço hercúleo de linguagem de forma a que ninguém conseguisse perceber alguns problemas de expressão que tinha. Digo esforço porque o homem, coitado, enquanto se embrulhava no seu discurso suava a potes. O líquido escorria-lhe abundantemente por testa, mãos e face. Chamava-lhe carinhosamente o Fonte humana.
- Pois o meu processo, efectivamente, tem alguns problemas, nomeadamente no que respeita ao Sr Juiz, portanto, que escandalosamente não tem feito nada para a avançar as coisas, precisamente porque me tem tramado a vida, portanto, vejam lá se urgentemente me resolvem a coisa, designadamente no que toca aos meus interesses.
Havia também a outra, que cuspia enquanto explicava a sua situação deixando o balcão de atendimento uma vergonha, cheio de saliva, tendo de ser desinfectado com prontidão com lixívia do Lidl mal a mulher saía do edifício porque, teoricamente, a lixívia do Lidl é a mais forte.
Depois há os doidos varridos que, na minha opinião, são os mais interessantes porque o simples facto de falar com eles envolve algum risco. São criaturas extremamente sensíveis e uma má escolha de palavras pode desencadear um berreiro que termina, quase sempre, com acusações inconvenientes e fora de moda.
- Estão todos combinados, juizes, procuradores, advogados e a Pide! A Pide! A Pide não acabou, o sistema judiciário é a Pide! A Pide!
De todos os necessitados que me aparecem, estes são aqueles que nunca conseguimos solucionar o seu problema. Por isso a sua visita aos nossos serviços é constante e eterna e, claro, nem sempre bem vinda.
Existem, por outro lado, os silenciosamente calmos. Esses não aprecio particularmente porque não dizem nada. Limitam-se a chegar ao balcão, a entregar um papel qualquer, ficando de seguida feitos parvos a olhar para um gajo à espera dum milagre. Um gajo vai fazendo as perguntas da praxe para ver o que querem e eles lá vão abanando a cabeça para o sim e para o não consoante a resposta. Mesmo depois de serem devidamente esclarecidos continuam a olhar para um gajo naquilo que se torna um momento desconfortavelmente Zen. Eu sou particularmente sensível a estes momentos, voltando a repetir tudo de novo desde o início passando, muitas vezes, meia hora num monólogo descontrolado onde repita as mesmas frases umas 10 vezes. Sempre me senti mal nos silêncios, não consigo reagir a eles. Quando conhecia alguma mulher a minha preocupação era não deixar que o silêncio se apodera-se da nossa conversa. Podia acontecer tudo, mas silêncio é que não.
Mas desengane-se o leitor que achar que entre os funcionários aqui do burgo não existem os que, devido á sua singularidade, deixam de ter comportamentos estranhos.
O meu colega aqui do lado é bastante sensível ao facto das pessoas chegarem ao Balcão sem nada e, principalmente, sem o numero de Referência. Se algum tipo ou tipa que aparecer aqui sem o numero de referência tem de o ouvir a teorizar sobre as vantagens e as desvantagens de não trazer a dita referência. Que esse comportamento dificulta o trabalho dos funcionários e que tem de se andar à procura duma coisa que nem se sabe se existe. Que não pode ser, que as coisas não funcionam desta maneira e que o tempo que se perde na busca do numero de referência podia-se estar a adiantar o trabalho noutro sítio e que o trabalho é muito e se se perde tempo com as referências nunca mais saímos daqui.
Uma fita portanto. Mas nem sempre isso acontece. Porque entre as criaturas que descrevi, existem algumas que são mais criaturas que outras. Nomeadamente a Sra. do Processo laboral que parece saída dum filme sueco. Cheirosa, de seios comprimidos nas vestes, esbelta, com o cabelo louro, solto, e com uma simpatia que tomara muitas terem só metade. Os homens da secção param de trabalhar e alargam os sorrisos em sinal de cavalheirismo.
Mas quando a Sra. do Processo Laboral diz que se esqueceu do numero de referência, aqui o meu colega do lado deixa de parte os problemas do mundo e responde-lhe com uma simpatia desmedida:
- Deixe estar, não há problema, não se preocupe, eu procuro isto aqui num instante.

quarta-feira, maio 17, 2006

Planalto

É com elevado agrado que aproveito as pontes que, de quando em vez, me são facultadas pela entidade empregadora. Os meus ilustres chefes, gente que amiúde me habituei a estimar tanto no bem como no mal, anunciam sempre com grande pompa e circunstancia a súbita benevolência aos funcionários. Fazem-no com um ar de quem salvou o mundo dum ataque do Bush e aproveitam sabiamente a ocasião de grande contentamento generalizado para mostrar alguma pedagogia a todos que os escutam:
- Como tem sido normal nestes casos, esta ponte só foi possível graças ao contributo dum funcionário que sempre nos habituou a um elevado rendimento e que faz constantemente elevar a fasquia da produção nesta instituição. São funcionários como Hugo Carvalho que nos fazem sentir orgulhosos de ocuparmos um cargo de chefia e de podermos, ano após ano, subir os ordenados de todos.
Os meus colegas, sentidos, desfazem-se em aplausos e mostram sorrisos brilhantes aos meus agradecimentos. É uma situação que me deixa bastante constrangido devido à minha timidez e faço um esforço enorme por conter as lágrimas. Sou um sentimentalista, eu sei, mas desde pequeno que assim sou!

Isto tudo para dizer que sempre que estas coisas acontecem e tenho uns dias a mais do que é normal, gosto de ir para o Alentejo, terra bonita e onde as pessoas são um portento de simpatia e parecem ter sempre alguma história para contar mesmo que só lhes perguntemos as horas.
Desta vez escolhemos uma quinta perto de Beja. Normalmente fazemos turismo rural. Gostamos da paz e do som dos bichos das quinta alentejanas. É a imagem mais perto do paraíso que tenho na cabeça, excluindo as de teor sexual que, evidentemente por respeito aos leitores, não as vou revelar aqui neste pequeno espaço familiar.
Como seria de esperar, o calor extremo que assolou o país na véspera, transformou-se em frio severo e em queda de chuva incómoda no dia em que parti de Lisboa para iniciar a tão aguardada campanha alentejana. Não era nada que eu não esperasse. A minha sorte já é conhecida até nas estrelas e não há um só santo que me consiga valer em situações como esta. Por isso, habituado a condições difíceis, passei os primeiros dois dias a ler, sentado numa cadeira, a perscrutar a chuva a cair lánguida no planalto. A água batia na terra e cheirava bem. As nuvens grossas cinzentas tornavam o campo ameaçador.
Ao contrário do que esperava, para quem tinha esperança de passar o tempo todo a passear e a visitar ruínas romanas, gostei bastante desses momentos de quietude. Com tão pouca coisa para fazer, aproveitei e dormi a sesta. Já não recordava a última vez que o fizera. Adormeci com o canto dos pássaros e acordei com o mesmo som. Também havia galinhas e galos a passear e a falarem uns com os outros com algum alarido, mas não o suficiente para desestabilizar a minha paz.
Um dos grandes momentos deste fim de semana foi sem dúvida o pequeno almoço que nos foi servido. Era constituído com coisas do campo. Sumo de laranja docinho e saboroso, bolo de Amêndoa que só Deus sabe o bom que estava, compota caseira de chorar por mais, pão alentejano acabado de sair da lenha e queijinho saboroso da região. Tais alimentos faziam o estômago ronronar de contentamento.
-Isto aqui é outra vida!
-Ai pois é, ai pois é! Pena é a chuva e o frio, mas amanhã, dizia o jornal, o tempo vai mudar. Vai ficar calor e já podemos passear um bocado.

-Anda cá já Mariana! Para quieta! Tá quieta ou ainda levas uma trolitada!
Foi-se a chuva e veio o sol. Mas com o sol veio também o infortunado fado de todas as férias e de todos os momentos de descontracção.
Duas anónimas criaturas, de idade incerta mas escassa, faziam o favor de rasgar com as unhas cobertas de sujidade, a tão prestigiante paz do planalto. Gritavam, berravam, birravam, saltavam e nem para os animais e pais eram simpáticos.
-Tá quieta Mariana, não corras atrás da galinha!
-Tá quieto Tomás deixa estar a senhor o ler descansado!
Ao invés de acordar calmamente com o som melodioso dos pássaros acordei com a doentia gritaria das crias rebeldes.
Claro que o pequeno almoço delicioso e saudável, centro de algumas conversas entre mim e a minha namorada, foi brutalmente vandalizado pelas criaturas, nomeadamente o bolo e o sumo que nesse dia não provei.
Enquanto me controlava por não dar um murro nos cornos do Tomás e um pontapé no nariz da Mariana a minha namorada ia tentando acalmar a minha fúria, muito embora não fosse capaz de lidar com a situação:
-Odeio putos mal educados. Odeio todos os Tomás, os Afonsos, as Marianas e as Beatrizes. Vou-me embora daqui e é já.
E fomos.
Enquanto voltávamos para casa e atendendo aos recentes acontecimentos, tentei a minha sorte, como se não tivesse nada premeditado.
-Por acaso estive a pensar. Os miúdos são mesmo um inferno. Se calhar não era má ideia tirarmos da cabeça a concepção do nosso.
Mas a resposta, injustamente, veio cuspida com algum rancor:
-Deixa-te de merdas!
E lá fomos estrada afora cumprimentados por uma placa sorridente que gozava com a nossa cara.
"Obrigado pela vossa visita
Lisboa – 184 Km"

terça-feira, abril 11, 2006

Mordomias

O sítio onde me costumo saciar com uma bela e suculenta alheira chama-se Valente. Valente é o apelido do Sr. Valente, que além de ser o dono do restaurante é também o responsável por tirar os cafés e as imperiais. Ele diz, inchado no seu orgulho, que são as melhores do mundo, mas a mim não me engana ele. Aquilo, vi eu com os próprios olhos, são imperiais que já vêm mortas do barril. Não sei como raio ele faz a habilidade, mas tirar uma imperial daquela maneira deveria ser considerado uma arte. É que nem uma gota de gás se emancipa no líquido. A minha adorada sobrinha que já vai nos 10 meses e que gatinha sem problemas para a frente e para trás, conseguiria tirar uma melhor imperial.
Mas um dia um cliente, habituado às vicissitudes da cerveja, reclamou pela qualidade do produto. Mas sem êxito. Teve a resposta que não merecia:
- Quer você agora ensinar-me a mim como se tira um imperial? Essa é boa!
Depois, ferido na sua vaidade, passou o resto do repasto do desgraçado a provocar:
- Essa é boa! Com que então não sei tirar uma imperial! Só faltava esta agora.
Além desse atributo, o Sr. Valente mexe na caixa registadora. É ponto de honra. Gosta de contar aos mais curiosos, sob o olhar de desagrado dos empregados, o segredo do seu negócio:
- Um gajo para não ser enganado tem de ser ele a mexer no dinheiro! Se não tá bem lixado. Ó! Ó!

Mas nem sei porque razão falo no Sr. Valente. De quem eu quero escrever é do Ferreira. O Ferreira é empregado do Valente há mais de uma década. Não são amigos, mas também não se dão mal. Ferreira acha que é mal pago, mas o Sr. Valente acha que não. Da discussão ninguém pode ser juiz porque diz a boa educação que não se fala de negócios à frente de estranhos. Mas cá para mim o Ferreira deve ter razão. As cozinheiras, que por acaso sem ser a alheira não cozinham nada de especial, queixam-se do mesmo. São mal pagas.
- Pode ser fuinha, mas não o podemos acusar de não pagar a horas. Nisso é verdade. Pode ter todos os defeitos, mas pagar, paga sempre a tempo e horas!
O truque para a alheira sair tão bem, segundo contam, é a forma como se fazem os furos nela e a temperatura do óleo quando salta para a frigideira.
- O sr. Hugo é que não sabe, mas digo-lhe que se você comesse uma alheira de Boticas, daquelas feitas com amor, iria ver a diferença. Até lhe vinham as lágrimas aos olhos.

Uma das particularidades do Ferreira é a sua má disposição diária para com os clientes. Os habituais e os ocasionais. Já lá vou há três anos e nunca o vi a ser simpático para ninguém, nem para os dementes que lhe deixam gorjeta. Devo confessar que tenho uma mórbida atracção por empregados de má vontade. Não sei. Gosto de pedir uma coca-cola ao Ferreira e receber de volta:
-Já vai.
E se insisto:
- Já disse que já vai.
São estes modos que conquistam a clientela. Uma vez uma senhora, coitada, teve o azar de receber a demasia em carência.
- O Sr. enganou-se, eu dei-lhe 20 euros e estou a receber 10 de troco.
A resposta do Ferreira foi o que se esperava e a Sra. saiu do restaurante a chamar-lhe todos os nomes a que tinha direito manchando-lhe a virilidade e a conduta sexual da mãe. Podia ter sido roubada em 10 euros, mas as palavras que vociferou valeram bem a pena. Cada vez que a senhora apontava com maus modos a masculinidade do Ferreira toda a gente ria a bandas largas. Ferreira foi enxovalhado. Mas as últimas palavras foram dele.
- Vaca de merda!
O carisma do Ferreira é tão grande e os seus modos tão aditivos que ainda hoje essa mulher lá vai. É certo que entre empregado e cliente não existe qualquer troca de palavra. Ela pede o seu repasto apontando para a lista e ele traz-lhe o pedido em silêncio.

Mas o Ferreira como qualquer homem que se preze mudou. Ainda pensei que seria uma paixoneta qualquer, mas não. Estranhei, como toda a gente que costuma comer no restaurante, os súbitos bons modos do Ferreira. Os clientes, apesar de ser difícil de acreditar, são agora recebidos por um bom dia, faça favor de me acompanhar, o que deseja.
Às senhoras afasta a cadeira para se sentarem, e se tiverem o casaco vestido o Ferreira prontifica-se a ajudar. Sempre que o copo se apresenta vazio, Ferreira apressa-se a enchê-lo e até pergunta, quando passa pela mesa, se está tudo bem, se deseja mais alguma coisa. Até, caso o cliente hesite, é bem capaz de aconselhar o vinho que fique bem com o prato. E se o cliente for fumador é o Ferreira que se apressa a acender-lhe o cigarro evitando que o freguês perca tempo à procura de lume.
Rapidamente o mistério foi resolvido. O Dr. Cerqueira, advogado de pouca fama e com cara de ser um grande vigarista chegou e explicou:
- Então ó Ferreira, diz lá se não gostaste? Até tavas maluco ó Ferreira. Aquilo é que foi comer hum? Diz lá à malta se aquilo não é uma categoria.
Afinal o Ferreira, portista de nascimento, tinha apostado com o Cerqueira que o Porto iria ganhar ao Sporting. O Cerqueira que não é homem para se calar e que gosta muito de se armar ao pingarelho aceitou logo o desafio e apostou um jantar no Gambrinus. Claro que se o Ferreira ganhasse o Cerqueira perdoava-lhe a dívida em troca duma sapateira no Ramiro. Mas o Cerqueira ganhou e sem eu saber como, cumpriu a palavra. Levou o bom do Ferreira ao Gambrinus.
- Diz lá ó Ferreira se aquilo não é atendimento como deve ser. Até te acenderam o charuto!